уторак, јануар 24

Percebeu que seu quarto não estava mais lá. Apesar da solidez do chão, da concretude das paredes, do amparo da cama, o ambiente estava ausente. Alguma coisa o incomodava. Alheio, o que percebia era falta: do conchego, da luz, do ruído irregular da rua, da sombra que o prédio em frente criava, dando a invenção de formas ocultas e temporárias sobre os seus livros, o travesseiro, a colcha, a cama de ferro, a sua perna. Pensou no amparo que essas coisas lhe proporcionava, uma intimidade tão íntima que se ocultava de si mesma. Ninguém sabia realmente o que se passava, naquele ambiente, entre eles. Esquecera que até no momento mais íntimo, a presença dele se fazia notar pela expressão de certos gestos, a entonação de uma conversa, uma cantada, uma trepada, tudo ali remetia para um estado que, incoerentemente, parecia sempiterno. A ausência, decerto deveria ser a primeira vez que sentia-se assim, julgou lembrar, lhe indicava que algo mudara. Desconfiou que poderia ser também alguém. "Mas quem?". Foi primeiro atrás de algo.

A água ainda não tinha gelado o suficiente, mas mesmo assim tomou-a de um gole só, voltando a despejar mais água no copo vazio. Não se lembrava a que horas pegara no sono. Se foi durante a noite, se fora durante o dia, se o que pensava era matéria dos sonhos, ou se sonhara que sonhou que tudo aquilo era um sonho. O discernimento precário, fragilizado pela sonolência e o cansaço, não facilitava muito o alinhamento dos fatos, dos pensamentos, das sensações, dos sonhos. Continuava a beber água, dessa vez com o cigarro na mão. Não sabia mais se tinha esquecido todas as coisas e entrado numa realidade virtual, infinitamente subjetiva, estrangeira a qualquer signo comum, ou se, ao invés da virtualidade, aquele momento era pura realidade, descordada, sem linha de esquecimento, de memória, de nomeação. Pendeu a cabeça para o lado, num relaxamento incerto. Visou.

Substantivo: palavra que nomeia um ser ou um objeto; uma ação, qualidade, estado considerados separados dos seres ou objetos a que pertencem; nome. Não, isso não tinha muita relevância naquela hora. Não era substantivo o seu problema.

Adjetivo: palavra que modifica o substantivo, indicando qualidade, caráter, modo de ser ou estado. Eureka! Sim, parecia que começava a entender sua gramática.

Genérico e vascilante lançou que a determinação do nome oscilava diante da imprevisibilidade do estado, do modo de ser. Mas não se convenceu muito disso (talvez pela generalidade do pensamento). Tampouco se deu por vencido. Procurou e encontrou várias gramáticas portuguesas, brasileiras ora pois, da época do colégio das aulas da professora Ademarci, para certificar que as informações sobre os substantivos e os adjetivos eram dignas de atenção. Substantivo. Adjetivo. Lia e relia as infinitas variações das definições da língua. Réquiem.

Passou pelos pronomes com desastrada curiosidade, visto que ainda não buscava nada por ali. Tinha em mente que sua caça era maior, ia além. Estava no mundo, no ambiente do quarto perdido, em algum hiato que separou suas frases de uma conclusão. Desoração.

Percebeu, passado muito tempo depois, que todo seu pensamento fora tomado pelas inésimas gramáticas que percorrera, folheara, inquirira a respeito do seu estado nos últimos tempos. A ausência do quarto era quase uma reminescência. Lânquida. Sua linguagem replicava tudo aquilo que lera esvairadamente nos livros que já não saiam do seu alcance. Mas isso não era um problema para ele, certamente. Comprava gramáticas, várias e de autores diferentes. Não acreditava totalmente em nenhuma delas, mas sempre se interessava pela intriga que parecia se assomar da leitura incessante entre todas elas juntas.

"Seu troco. R$0,25." Pensou em parar de fumar, mas agora não era a hora. Estava atolado até o pescoço com os acontecimentos dos últimos tempos para poder se livrar do cigarro, sem que isso afetasse seu humor ou concentração na tarefa de busca. Mas tudo era também uma questão de estilo. Acabava-se ao pensar que tinha que parar. Incessante, excessivo, mas vazia, sempre vazia tinha sido sua busca. Não podia se larga de nada, mesmo que nada tivesse até hoje.

"Não encontrava mais o quê?"

Ao entrar no quarto, percebeu que o cigarro transformava o ambiente de ar puro e fresco em jaula de fumaça desagradável e espessa. 'Imperfume", soltou em voz inesperada. No quarto não mais fumaria. Mas antes passara os olhos sobre alguma expressão sobre o dicionário. Não lembrava o que era, mas estava lá, aberto, visível, sempre a mostra. Íntimo.

Dirigiu-se para a sala e notou que a sala estava diferente. Estranhou aquele ambiente, não reconhecia sua sala ali. "O que sucedera?". Foi ao quarto, reuniu as gramáticas, os dicionários, os livros de ortografia, sinônimo, antônimo, manuais de escrita, redação e oralidade que comprara e iniciou sua busca no chão do desconhecido. Dessa vez chamou-lhe a atenção o pronome: vocábulo que pode substituir um substantivo ou sintagma nominal. A substituição sugeria a existência e a inexistência do próprio nome, na sua gramática a essa altura já alucinada por tantos desvãoes, espelhos. Pensou nas desistências, nas resistências, nos deslocamentos, nos arranjos, nas liações... Pensou no fim de tudo. Temeu que o pretérito mais-que-perfeito fosse sua radicalidade. "Eles se foram"... percebeu a resignação por trás da oração. Mas encontrou uma definição que não cancelava o fim das coisas, pelo menos o fim eterno, metafísico. Estava ali sua busca. Seu fim e no entanto apenas o seu começo.

Pronome recíproco: pronome átono que indica que a ação expressa pelo verbo implica uma relação mútua de causa e efeito entre os agentes indicados no sujeito. Causa?, efeito?, agente? Confuso, resolveu investigar.

(Cf. para os verbetes gramaticais o Dicionário da língua portuguesa, Aurélio)

1 коментар:

caderno de notas је рекао...

Num enlance ela almeja fixar o movimento e ainda assim bailar. É porque a dádiva é apenas deslocamento, não tem parada, não tem descanso. A gramática só aponta, mas não contenta porque onde ela chega... olhe! já passou.