понедељак, мај 30

Tudo o que nos acontece, tudo o que falamos ou nos é narrado, tudo quanto vemos com os nossos próprios olhos ou sai da nossa língua ou entra pelos nossos ouvidos, tudo aquilo a que assistimos (e por que, portanto, somos de certo modo responsáveis), há-de ter um destinatário fora de nós, e esse destinatário vai sendo seleccionado por nós em função do que acontece ou nos dizem ou então dizemos nós. Cada coisa deverá ser contada a alguém - nem sempre a mesma pessoa, não necessariamente -, e cada coisa vai-se colocando de parte como quem folheia e aparta e vai destinando prendas futuras numa tarde de compras.
Tudo deve ser contado pelo menos uma vez, ainda que, como havia determinado Rylands com a sua autoridade literária, deva ser contado segundo os tempos. Ou, o que vem a dar no mesmo, no momento justo e às vezes nunca mais se não se soube reconhecer ou se deixou passar deliberadamente esse momento preciso. Esse momento apresenta-se às vezes (a maioria das vezes) de maneira imediata, inequívoca e compulsiva, mas muitas outras vezes apresenta-se apenas confusamente e ao fim de lustros ou décadas, como acontece com os grandes segredos. Mas nenhum segredo pode ou deve ser guardado para sempre do conhecimento de toda a gente, é forçoso que encontre pelo menos um destinatário uma vez na vida, uma vez na vida desse segredo.É por isso que algumas pessoas reaparecem.É por isso que nos condenamos sempre por aquilo que dizemos. Ou por aquilo que nos dizem.

Javier Marías, in 'Todas as Almas'


PS: ONDE ESTÃO VCS?

уторак, мај 24

Aqui está minha vida.
Esta areia tão clara com desenhos de andar
dedicados ao vento.
Aqui está minha voz,
esta concha vazia, sombra de som
curtindo seu próprio lamento
Aqui está minha dor,
este coral quebrado,
sobrevivendo ao seu patético momento.
Aqui está minha herança,
este mar solitário
que de um lado era amor e,
de outro, esquecimento.

Cecília Meirelles

понедељак, мај 23

Deus triste

Deus é triste.
Domingo descobri que Deus é triste
pela semana afora e além do tempo.

A solidão de Deus é incomparável.
Deus não está diante de Deus.
Está sempre em si mesmo e cobre tudo
tristinfinitamente.
A tristeza de Deus é como Deus: eterna.

Deus criou triste.
Outra fonte não tem a tristeza do homem.


CDA

субота, мај 21

"Felizes os que não falam; porque se entendem "

Mariano Larra

среда, мај 18

Não passou


Passou?
Minúsculas eternidades
deglutidas por mínimos relógios
ressoam na mente cavernosa.

Não, ninguém morreu, ninguém foi infeliz.
A mão- a tua mão, nossas mãos-
rugosas, têm o antigo calor
de quando éramos vivos. Éramos?

Hoje somos mais vivos do que nunca.
Mentira, estarmos sós.
Nada, que eu sinta, passa realmente.
É tudo ilusão de ter passado.

CDA

петак, мај 13

Tenho uma tensão de sentimento.É estranho, não me impele. Algo resignado. Impressão de que não poderia ser diferente, posto que se fosse,não o seria. Me calo.
Tantos sons. Tanta banalidade.
Me calo.
(não. Isto é absurdamente uma mentira. Tagarelo inutilidades.me desperdiço.)
Sei que inventei tal tensão. Inutil? muito.
A verdade é que não há oposição entre o translúcido e o opaco. Inclusive, não há oposições.
Há somente desejo.
Ele ressoa, indefinível. Não quer se concretizar. Desejo de desejo é feitiço, artificialidade. Não é nem deixa de ser. Não tem objeto, não se dirige a nada, nem quer conquistar o mundo. Desejo pleno é só prazer dor numa dimensão onda nada mais se distingue. E tudo, que eu digo falo penso, já não corresponde à essa angústia. Já não corresponde a nada. Não tenho nada a dizer sobre o mundo.
No entanto, escrevo falo penso todo o tempo.É preciso suportar o silêncio. Suportar o tempo. É só para existir que existe a expressão. Ainda que nada de fundamental possa ser dito.
(...!)
é preciso distrair-se, divertir, fixar, transbordar.

четвртак, мај 12

Poética



Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare


— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.


Manuel Bandeira

понедељак, мај 9

Ápice


O raio do sol da tarde

Que uma janela perdida

Refletiu

Num instante indiferente —

Arde,

Numa lembrança esvaída,

À minha memória de hoje

Subitamente...





Seu efêmero arrepio

Ziguezagueia, ondula, foge,

Pela minha retentiva...

— E não poder adivinhar

Porque mistério se me evoca

Esta idéia fugitiva,

Tão débil que mal me toca!...



— Ah, não sei porquê, mas certamente

Aquele raio cadente

Alguma coisa foi na minha sorte

Que a sua projeção atravessou...





Tanto segredo no destino de uma vida...





É como a idéia de Norte,

Preconcebida,

Que sempre me acompanhou...


Sá Carneiro

среда, мај 4

Estou cansado, é claro,
Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.
De que estou cansado, não sei:
De nada me serviria sabê-lo,
Pois o cansaço fica na mesma.
A ferida dói como dói
E não em função da causa que a produziu.
Sim, estou cansado,
E um pouco sorridente
De o cansaço ser só isto —
Uma vontade de sono no corpo,
Um desejo de não pensar na alma,
E por cima de tudo uma transparência lúcida
Do entendimento retrospectivo...
E a luxúria única de não ter já esperanças?
Sou inteligente; eis tudo.
Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,
E há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá,
Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa.

Álvaro de Campos